domingo, 15 de maio de 2011

O encontro entre café e vinho

Aprender a experimentar estes dois produtos de qualidade é algo único que instiga nossa memória, resgata boas lembranças, inicia conversas interessantes e comparações inevitáveis. Plantamos uma semente que dá início a este bate-papo sobre o tema que, certamente, não termina por aqui.



      O café na Arábia era qahwah, na língua deles, vinho. Conhecido como vinho da Arábia, desde sua descoberta tinha um caráter inebriante, conquistador, requintado. Capaz de dar energia e estimular os sentidos, a pronúncia da palavra assemelha-se ao que passamos a chamar café: qahveh.

      A relação entre café e vinho pode ter se iniciado há milhares de anos. Porém, os dois produtos traçaram caminhos distintos no conhecimento do mundo sobre suas complexidades e parecem agora ter se encontrado mais adiante nessa estrada. Hoje, vinho e café estão em pé de igualdade quando falamos de sabor, aroma e esmero na produção.

      O vinho criou uma cultura de apreciação importante e cativou amantes há décadas. O café, por sua vez, vem atualmente formando esse hábito e acompanha a rota percorrida pelo primeiro. Por fazerem parte de mercados de produtos diferenciados, ambos têm similaridades e podem ser comparados quando falamos em status de consumo.

      O universo do vinho gourmet permite com freqüência comparações entre safras de diferentes regiões produtoras, entre uvas de espécies distintas e tecnologias de vinificação (colheita, desengaçamento [soltar os bagos de uva dos cachos], prensagem, fermentação, filtragem e armazenamento). Cada tipo de vinho possui seu momento apropriado para degustação.

      No café não é diferente. O preparo que será dado ao café e a última etapa pela qual passa o produto influenciam fortemente na qualidade final na xícara, além, é claro, do beneficiamento (colheita, limpeza e separação, despolpamento, remoção da mucilagem e secagem e armazenamento) e da torra do grão.

PROCESSO PRODUTIVO

      A maioria das uvas cultivadas no Velho Mundo (França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha etc.) é reconhecidamente de qualidade. As vinícolas têm receitas milenares de cultivo que, aliadas aos diferentes microclimas das regiões onde são cultivadas e ao cuidado de cada produtor com o solo e a vinha, conferem às bebidas notas altas.

      A junção desses fatores é denominada terroir e influencia no resultado final do vinho produzido. Assim como a uva cultivada (branca ou tinta) e as variedades chardonnay, cabernet sauvignon, entre outras, que passam por diferentes processos de vinificação, o café possui duas espécies comercializadas, robusta e arábica, e variedades distintas, como catuaí, bourbon, icatu, conillon, entre outras, que também passam por beneficiamento diverso.

      No entanto, é possível estabelecer uma relação direta entre os processos pelos quais passam os dois produtos. O fruto do café, conhecido como cereja quando maduro, deve ser colhido na sua maturação plena, assim como a uva na videira. Para o engenheiro e juiz da Specialty Coffee Association of America (SCAA), Ensei Uejo Neto, “as variedades de café consideradas precoces, ou seja, que naturalmente possuem um ciclo entre a florada até a plena maturação menor do que as demais, têm como determinante o local de seu plantio para a obtenção de toda a gama dos aromas e sabores”. O mesmo acontece com as uvas cultivadas em clima frio, que permite com morosidade a expressão de todo o potencial do fruto e torna a bebida mais aromática e saborosa.

      “Ambos os processos resultam em uma bebida mais limpa, leve, um pouco menos encorpada, mas que permite a percepção de notas de sabor de origem vegetal, como flor, fruta, ervas, e a boa acidez”, explica Geórgia Franco de Souza, proprietária da Lucca, que ouviu pela primeira vez esta correlação entre café e vinho nos Estados Unidos, em 2000. A especialista ainda vai além ao relacionar o café lavado (desmucilado), que passa pelo processo de retirada da mucilagem, com os espumantes, que têm entre suas características a presença marcante da acidez. Ou ainda os vinhos de sobremesa feitos a partir de uvas supermaduras que concentram mais açúcar, assim como os cafés naturais conhecidos como late harvest, que usam do mesmo princípio, a colheita tardia, que resulta em grãos mais adocicados.

O NARIZ DUPLO PARA AVALIAR

      Na linha de relações entre as duas bebidas, a SCAA encomendou ao enólogo francês Jean Lenoir o estudo e o desenvolvimento de um grupo de aromas denominado Le Nez du Cafe (O Nariz do Café), que consiste em uma adaptação do trabalho por ele realizado em 1981 para as nuances do vinho. A caixa com pequenos vidros semelhantes a frascos de perfumes contém 36 aromas possíveis de ser identificados na degustação de cafés, como limão, mel, chocolate ou cedro, por exemplo.

      Para o vinho, Jean elaborou o Le Nez du Vin, que apresenta 54 aromas com notas primárias de fruta, floral, animal, vegetal e picante e, por fim, agradável, que engloba nuances secundárias como café, chocolate e caramelo, por exemplo. Depois de muito treino consegue-se resgatar na memória olfativa cheiros e sabores que lembram aquele do café ou vinho apreciados. Do desenvolvimento deste projeto surgiu a Roda de Aromas e Sabores da SCAA, que traz de forma completa ao degustador os mais de 30 aromas e gostos correlacionados (ver página 38). O vinho possui uma roda parecida que também destaca as nuances da bebida e ajuda o apreciador a estabelecer referências com o sabor que sentiu no momento da prova.


COMPLEXIDADE DO PREPARO

      Outras etapas importantes do vinho e do café são a fermentação e a torra, respectivamente. Fases estas que determinam a qualidade e o tipo de bebida ou grão que chega ao consumidor. O processo de fermentação do vinho é complexo, com diversas nuances entre os tipos de bebidas a serem preparadas. No geral, é um fenômeno natural no qual o açúcar contido nas uvas se transforma em álcool sob a ação de leveduras. Simultaneamente ocorrem outras reações químicas que, ao final do processo, resultam no vinho que conhecemos. O tempo de fermentação, a forma como toda a vinificação é realizada e o armazenamento para envelhecer ou seguir para o engarrafamento determinam a qualidade, o aroma e o sabor do produto.

      O mesmo acontece com o café no processo de torra, que ocorre respeitando as características do grão beneficiado, o tipo de preparo que ele irá receber e as possíveis diferenças de paladar e gosto do consumidor do produto. O mesmo grão torrado de maneiras diversas, nível do claro ao escuro, resulta em uma bebida completamente distinta que pode acentuar as qualidades ou mascarar defeitos dos grãos. Do lado positivo podem-se notar nuances cítricas, florais e doces ou negativas, como amargor e adstringência, por conta de um beneficiamento incorreto ao longo do processo ou de uma torra muita escura.

BARISTA E SOMMELIER: A PONTA

      O sommelier, conhecedor da arte para harmonizar o vinho, indicará a melhor temperatura para cada tipo de bebida. De acordo com Tiago Locatelli, sommelier do restaurante paulista Varanda Grill, um espumante deve estar na temperatura de 6ºC a 8ºC, os brancos leves a 8ºC e os encorpados e rosés entre 12ºC e 13ºC. Tintos leves devem estar ao redor de 17ºC e encorpados entre 18ºC e 19ºC. Para esfriar o vinho pode-se utilizar um balde de gelo; uma garrafa no gelo durante oito minutos sofre uma redução de 5ºC na temperatura, que corresponde a 60 minutos de permanência na geladeira. Há também o cuidado com a taça escolhida, que deve ser preferencialmente lisa, incolor, com pé alto e diâmetro de boca menor que o do corpo, o que facilita a análise olfativa.

      O café não chega pronto ao consumidor, esta a grande diferença entre ele e o vinho. Para prepará-lo corretamente é necessária a participação do barista, profissional que há poucos anos começou a ter sua importância reconhecida no mercado de cafés de qualidade. O barista carrega a responsabilidade de entregar ao apreciador um café bem tirado, que destaque todas as nuances que o grão apresentou durante o processo de produção.

      A última etapa da cadeia cafeeira está nas mãos deste profissional, que irá realizar a moagem adequada do grão para o tipo de preparo. No filtro ela é fina; na french press e na cafeteira italiana deve ser grossa; e para o espresso, média. A quantidade de pó para a proporção e temperatura ideais da água, a regulagem do acessório ou maquinário utilizado e o tempo de contato da água com o pó são pontos importantes para os quais o barista deve atentar, além da escolha da xícara de formato correto e sua temperatura.



TEXTO Mariana Proença, Revista Espresso.

2 comentários:

  1. Fascinante !
    Como apreciador do café , cada dia aumento meus conhecimentos neste blog.
    Abraços
    Helio

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  2. Helio, Helio....

    Desse jeito eu acredito!

    Abração!

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